A Região Metropolitana de Belém — formada, além da capital, por Ananindeua, Marituba, Benevides, Santa Bárbara, Santa Izabel e Castanhal — é um território em que áreas rurais e urbanas se misturam cada vez mais. Nessa zona de transição, onde a floresta se estende até os limites do asfalto, experiências agroecológicas mostram, na prática, como soluções baseadas na natureza podem regenerar o solo e redesenhar paisagens degradadas.

A pesquisadora da Universidade Federal do Pará (UFPA) Larissa Aviz, autora da dissertação “Práticas agroecológicas na transformação de paisagens”, estudou esse fenômeno de perto. Ela afirma que as agroflorestas representam “a possibilidade de reexistir em ambientes perturbados”, um modo de reconstruir a vida onde o monocultivo e os agrotóxicos deixaram marcas profundas: “não se trata apenas de plantar árvores”, explica. “É redesenhar relações entre agricultores, solos, florestas e comunidades urbanas que consomem esses produtos.”

Um hectare de esperança

No município de Marituba, o sítio Velho Roque é um retrato dessa transformação. Em pouco mais de um hectare, o agricultor Noel Gonzaga, ao lado da esposa e do filho, cultiva uma variedade que espelha a floresta amazônica: jerimum, quiabo, feijão verde, limão, açaí, muruci, cupuaçu, cacau, café, biribá, macaxeira e hortaliças. Quase todas as árvores foram plantadas por suas próprias mãos — um gesto repetido tantas vezes que, hoje, a paisagem parece devolver o afeto investido nela.

Noel começou sua trajetória agroecológica no interior do Rio de Janeiro, entre 2009 e 2010. Voltou ao Pará alguns anos depois e, em 2013, criou o Grupo para o Consumo Agroecológico (GRUCA), uma rede que conecta agricultores e consumidores comprometidos com uma produção limpa e justa. “O GRUCA tem esse propósito de aproximar esses dois grupos: quem produz e quem consome”, explica. “O desafio é fazer com que as pessoas tragam isso para o seu cotidiano.”

No sítio, a produção segue os princípios da natureza. Noel usa restos de roçagem, folhas secas, esterco, cama de aviário e serragem na compostagem que alimenta o solo. O resultado vai além da colheita: o retorno de insetos, pássaros e até da brisa fresca mostra que o equilíbrio voltou a se estabelecer. “Não é só sobre plantar e ter o verde. É sobre enxergar outro modelo de economia, mais justo, mais saudável, mais próximo da terra”, diz.

Mas a beleza dessa transformação esbarra na realidade prática. O transporte limitado e os altos custos dificultam o escoamento da produção, e parte dos alimentos se perde antes de chegar ao mercado. O GRUCA tenta contornar o problema com uma rede de consumo solidário, em que consumidores pagam uma mensalidade e recebem cestas de produtos agroecológicos. Ainda assim, o alcance é restrito. “Ninguém vai ficar rico com isso”, admite Noel. “Mas queremos provar que outros modelos são possíveis e conquistar mais pessoas para fortalecer o nosso sistema.”

A floresta como cura

Em Santa Bárbara do Pará, a história de dona Lenir segue um caminho semelhante, mas nasce de outra urgência: a da saúde. Após enfrentar um longo tratamento de desintoxicação por metais pesados — resultado de anos consumindo alimentos com agrotóxicos —, ela decidiu transformar um antigo campo de futebol abandonado em agrofloresta. Assim surgiu o sítio Caá Mutá.

“É um cansaço satisfatório”, diz ela, entre risadas. “Eu amo plantar. Parece que gosto mais de plantar do que de colher”. O que antes era pasto e terra exaurida agora abriga mais de 60 espécies: de rúcula e cheiro-verde a banana, cacau, jambo-rosa e ingá. A diversidade garante à família uma alimentação variada e saudável, além de devolver a fertilidade ao solo.

No início, nem tudo deu certo. “Nós plantamos o que queríamos comer, e não o que a terra precisava para se alimentar”, lembra. Com o tempo, aprendeu a respeitar o ritmo natural da floresta. Hoje, fala com orgulho sobre os resultados: o clima mais ameno, o retorno de polinizadores e até a recuperação de uma nascente próxima. “Com as agroflorestas, voltaram raposas, aracuãs, pássaros. É a coisa mais linda.”

Com as agroflorestas, voltaram raposas, aracuãs, pássaros. É a coisa mais linda.”

Lenir, moradora de Santa Bárbara, no Pará.

Mas, assim como Noel, dona Lenir também enfrenta o desafio de vender o que produz. A falta de mão de obra e de canais de comercialização faz com que parte das frutas apodreça no pé. “Na safra do jambu, perdi tudo. A fruta amadurece rápido e eu não consigo colher sozinha”, lamenta. Ela tentou investir em maquinário para desidratar os produtos, mas, sem apoio logístico ou mercado fixo, parte da produção ainda se perde.

Entre o campo e a cidade, um gargalo

As histórias de Noel e dona Lenir refletem um dilema comum na agricultura familiar amazônica: o da abundância sem mercado. O potencial produtivo das agroflorestas é evidente, mas a ausência de infraestrutura — transporte, armazenamento, compradores fixos — faz com que boa parte do esforço se perca antes de gerar renda.

Cacau produzido em agrofloresta. Foto: Evelyn Ludovina/InfoAmazonia

A pesquisadora Larissa Aviz chama a atenção para a necessidade de políticas públicas estruturantes que garantam crédito, assistência técnica e acesso a mercados. “Ainda é preciso consolidar esse modelo de produção e ampliar a conscientização dos consumidores sobre a importância de apoiar o produtor local”, afirma.

O governo do Pará tem tentado responder com programas como o Pagamento por Serviços Ambientais (PSA) e o Programa de Atuação Integrada para Territórios Sustentáveis, que buscam valorizar práticas sustentáveis e reconhecer os agricultores como provedores de serviços ambientais. Segundo a Secretaria de Estado de Meio Ambiente, Clima e Sustentabilidade (Semas), os incentivos incluem apoio técnico, acesso a crédito e regularização fundiária.

Na prática, porém, o acesso ainda é restrito. “Os editais são muito complexos. Falta descentralização”, diz dona Lenir. “Se fossem projetos menores, de R$ 100 mil, uma associação poderia implantar roças de agrofloresta, fazer o manejo e acompanhar o processo.”

Entre o ideal e o possível

Aos poucos, o Pará começa a desenhar uma nova paisagem: uma que combina agricultura, floresta e comunidade. Mas, como mostram Noel e dona Lenir, plantar agrofloresta é mais do que cultivar alimentos — é um ato de resistência e esperança.

Eles sabem que o caminho é longo, mas acreditam no poder de cada muda, de cada fruto colhido. “A floresta é a agricultura da abundância”, repete dona Lenir, olhando para o verde que plantou. Noel concorda: “Não é um negócio. É um modo de vida.”

Entre o chão fértil e a sombra das árvores, esses produtores mostram que as soluções baseadas na natureza não são uma abstração técnica. São um jeito de existir. E, mesmo que parte da colheita ainda se perca, o que brota dessas experiências — autonomia, saúde e consciência — tem um valor que nenhuma planilha contabiliza.


Imagem de abertura: Agrofloresta em Santa Bárbara do Pará. Foto: Evelyn Ludovina/InfoAmazonia.

Esta reportagem foi produzida com apoio do Centro de Pesquisa Florestal Internacional e Centro Internacional de Pesquisa Agroflorestal (CIFOR-ICRAF no Brasil), por meio do projeto de educomunicação Jornalismo e Soluções baseadas na Natureza, uma parceria inédita entre a instituição, a InfoAmazonia e a Faculdade de Comunicação Social da Universidade Federal do Pará.

Fonte: https://infoamazonia.org/2025/11/26/inspirados-na-agroecologia-agricultores-da-regiao-metropolitana-de-belem-reinventam-relacao-com-a-terra/

26 novembro 2025 at 8:00